6.5.06

 

mídia raivosa

por tadeu breda

Hoje andava pela rua e atentei às revistas da banca de jornal. Uma delas, a Istoé, estampava na capa: “Evo Morales, o homem que pode parar o Brasil”. Na ilustração, a foto do aymará colada num bujão de gás do qual sai um pavio em chamas – a cena que precede aquelas explosões de desenho animado.

Quanta infelicidade. Primeiro pela inverdade da frase. O gás boliviano responde a uma parte ínfima da matriz energética brasileira, que, todos sabemos, é predominada pela hidroeletricidade. Quando falamos em combustível, a gasolina é campeã – petróleo, portanto, do qual o país é auto-suficiente. Há também um uso relativamente grande do álcool, que vem das nossas próprias e problemáticas lavouras monocultoras.

Sim, claro, têm o bujão. Mas o bujão, campeão dos lares brasileiros, é gás liquefeito de petróleo, não gás natural boliviano. Este é utilizado em grandes cidades, numa parcela relativamente pequena de residências, em veículos de passeio e utilitários e em poucas indústrias pelo país afora.

Basicamente, quem depende um pouco mais do gás boliviano é a cidade de São Paulo. Com toda sua grandeza, se o suprimento do hidrocarboneto for interrompido, claro, a economia sofreria paulista um bocado. Mas São Paulo não é o Brasil, nem vice-versa. De forma que o país não precisa temer os humores do vizinho.

Aliás, por que a mídia vê Evo Morales como inimigo? Oras, ele só está cumprindo promessas de campanha, defendendo o interesse do seu povo. Presidentes brasileiros deveriam fazer o mesmo. Com o dinheiro previsto pelo aumento dos lucros com a nacionalização do gás e do petróleo, Evo anunciou o saneamento das dívidas públicas e um reajuste de 13,6% no salário-mínimo boliviano. E não custa lembrar que o aymará, logo quando chegou ao governo, diminuiu os próprios vencimentos – de 3,6 mil para 2,3 mil dólares –, requisitando aos deputados e senadores que fizessem o mesmo. E fizeram.

Arnaldo Jabor também contribui para o imbróglio de omissões e manipulações que rondam o caso Evo-Petrobras, reafirmando em suas crônicas a postura da Globo sobre o caso. Dia desses disse para o presidente Lula abrir o olho, que Hugo Chávez está lhe querendo passar a perna e ser a maior voz entre os países sulamericanos. É certo que o venezuelano tem essa pretensão, mas isso nada tem a ver com punhaladas nas costas. É política internacional, diplomacia: é erro de Lula, que pensava ser o “líder” natural no continente, mas seu discurso nem lá nem cá lhe retirou naturalmente o título. Chávez, com seu discurso bolivariano, soberano e anti-imperialista, assumiu o pesado fardo de peitar as nações que desde sempre exploram economicamente o continente.

Se é populista, a história é que vai dizer. Sei que ganhou desafetos na elite e que tem apelo popular. E, se o tem, é porque alguma razão há, porque a experiência neoliberal não deu certo, não melhorou a vida das pessoas.

Por que a mídia grande não pára de bater impiedosamente nos países vizinhos e não explica mais as coisas? A América Latina parece estar em importante transformação e os maiores meios estão alheios ao processo. Querem só bater em quem lhes desagrada. Até agora, por exemplo, não disseram reiteradamente que a Petrobras não é mais estatal. Por quê? [r]

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pela manutenção da ordem

por tadeu breda

Sem oferecer a menor resistência, um estudante é abordado por um policial. Cabelos compridos, mãos para o alto, ele é derrubado com um golpe de luta livre. Está rendido, não há porquê se debater. Então o policial começa: um, dois socos direto no rosto. Desacordado, o jovem é deixado no canteiro da avenida onde o MPL protestava pacificamente contra o aumento de 8,8% na tarifa de ônibus. Florianópolis, maio de 2005.

Essa seqüência de abuso de poder pode ser vista no documentário Amanhã vai ser maior, de Fernando Evangelista, que conta muito da repressão que o movimento social sofre em Santa Catarina, de longe a mais violenta do país. "Eles prendem e soltam sem explicações", diz Matheus Felipe de Castro, advogado do MPL, ele mesmo detido durante uma manifestação, quando se apresentou a um policial como advogado de um estudante que estava sendo levado.


Ao todo, desde 2004, na Revolta da Catraca, até fevereiro de 2006, última manifestação do MPL em Florianópolis, cerca de 40 estudantes foram para a delegacia. "Fui preso em três ocasiões, e em todas elas fui jogado em cela comum, como um criminoso", relata Marcelo Pomar, militante do Passe Livre. "Na primeira vez, estava fora da manifestação, dando entrevista a uma rádio da cidade, quando quatro policiais à paisana chegaram me algemando." Em outra ocasião, quando foi preso com mais dois estudantes, Marcelo teve de pagar uma fiança de R$ 1.500, dinheiro conseguido junto a partidos, movimentos sociais e defensores dos direitos humanos de Florianópolis.

Mas a repressão não se faz somente com prisões. Três estudantes do MPL catarinense estão sendo indiciados judicialmente por formação de quadrilha, apologia ao crime e atentado a serviços públicos essenciais - ou seja, crimes comuns. "Na época da ditadura, os militantes eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional", lembra Matheus, advogado. "Hoje as prisões são fundamentadas como crimes comuns para retirar seu peso político e evitar os direitos humanos."

Para Marcelo, o desrespeito aos direitos humanos em Santa Catarina se dá de forma sistematizada, ao contrário do que acontece no Norte do país, onde os movimentos sociais são reprimidos mais descaradamente. E não só com o MPL. "É uma dicotomia: o Estado considerado a 'europa brasileira' é um dos que mais desrespeitam os direitos humanos no país."

O coronel Dejair Vicente Pinto discorda dessa visão. Para ele, as pessoas falam muito em criminalização dos movimentos sociais, mas não criticam os atos dos militantes. "A lei é igual para todos. Se eles cometem crimes, a polícia deve combater. Não importa se foi motivação política ou qualquer outra."

Secretário de Segurança Pública do Estado, o coronel Dejair alega que a PM nunca toma a iniciativa nos confrontos com manifestantes, somente reage a provocações. "Fechar a principal ponte da ilha de Florianópolis, o cordão umbilical da cidade, é uma provocação. O centro da cidade foi todo depredado pelos manifestantes, vários danos foram contados. A polícia agiu no estrito cumprimento do dever e na manutenção da ordem pública."

Agir no 'estrito cumprimento do dever', na concepção do coronel, é um conceito amplo, que inclui até a prisão de jornalistas. Foi o que aconteceu com o fotógrafo Cláudio Sarará, detido enquanto trabalhava na cobertura de uma manifestação no terminal de integração de Floripa, em fevereiro deste ano, para o Diário Catarinense.

"Estava fotografando a ação de capangas e a prisão de um militante do movimento quando um PM me abordou e me proibiu. Pô, eu estava trabalhando. Daí ele me xingou de 'crioulo veado', eu retruquei e ele me prendeu por desacato. Depois tomaram minha máquina e me agrediram dentro da viatura", relata. Sobre este caso, o coronel Dejair apenas afirma que Cláudio estava embriagado e que, ao invés de cobrir a notícia, o fotógrafo "quis ser a notícia". E por que foi preso? "Ele atrapalhou a ação policial, foi inconveniente com os soldados."

A deputada federal Luci Choinacki (PT-SC) formulou um projeto de lei pedindo a anistia dos três jovens indiciados pela polícia. "O secretário queria prender estudantes, não importa quem fosse e como fosse, para dar uma lição neles", diz a deputada, para quem a lei e a justiça parecem não existirem em Santa Catarina.

O documento, protocolado neste ano, está tramitando na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e, segundo a deputada, vem sendo um instrumento de pressão, mobilização e luta por justiça e respeito aos direitos humanos no Estado. "Não podemos esquecer a repressão violenta que sofrida pelo MPL. O Estado tem de pagar o preço, a sociedade tem de saber quem são os responsáveis", diz Luci. "O direito de ir e vir, tão alegado pelos policiais, também passa pelo direito ao transporte público." [r]


foto. cmi-brasil
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4.5.06

 

a nacionalização da petrobras

por tadeu breda

Sosseguem o nacionalismo. Não o boliviano, o brasileiro. A tônica da mídia e de uma boa parte dos compatriotas é agressiva para com Evo Morales Ayma, o presidente da Bolívia que tomou coragem e decidiu pôr fim à exploração transnacional aos recursos naturais do país.

Coragem, não para agir conforme manda sua própria cabeça, mas sim para atender aos suplícios do povo que o elegeu. O índio aymará, descendente dos incas pré-colombianos, foi eleito no primeiro turno, com mais de 50 por cento dos votos. Como o povo pobre que o colocou no posto máximo do poder, não usa terno. Se a nação é feita majoritariamente de indígenas e pardos, por que sempre foram os brancos que ocuparam o poder?

Não foi Evo, plantador de coca, que nacionalizou os hidrocarbonetos bolivianos. Foi o próprio povo do país, que derrubou dois presidentes no ano passado (Sanchez de Losada e Carlos Mesa). Os velhos padrões de governabilidade, as associações entre o governo e a iniciativa privada imperialista, membros da elite branca no poder, não lhes serviam mais.

Nas ruas, os bolivianos mostraram que a democracia no país não se limita ao voto – portanto, nunca esteve mais forte, mais direta. Evo não é nenhuma espécie de louco desvairado inconseqüente. Fez cumprir uma promessa de campanha: o fim do espólio dos recursos naturais. E não adianta dizerem que sem as transnacionais petrolíferas a Bolívia vai amargar uma tragédia sem precedentes. O país já é o mais pobre da América do Sul. 70 por cento dos bolivianos vivem na miséria. O pior que pode acontecer é a Bolívia permanecer como está – mas pelo menos terá soberania.

Se a iniciativa privada fosse benéfica, o país não estaria na situação em que se encontra. Evo tampouco seria eleito por um povo revoltado com a pobreza. O presidente fez o que todos os presidentes deveriam fazer: tomar posse do que já é do Estado, da população, mas que vem sendo usurpado em troca de um discurso global que acredita que ceder ao mercado é o único caminho.

Por isso Evo foi corajoso. Peitou o capital internacional e estabeleceu que, a partir de agora, as empresas que quiserem explorar o gás boliviano deverão ficar com apenas 18 por cento dos rendimentos. É um preço justo? Basta saber que a imensa maioria dos bolivianos usam fogão à lenha, mesmo vivendo em cima de muito gás.

A mídia brasileira, manipulando fatos e omitindo explicações, mostrou-se chocada com a atitude de Evo. Disse que Hugo Chávez está tramando contra nós e que, se o presidente boliviano admirasse Lula o tanto que diz admirar, não teria feito isso com o Brasil. Mas quem disse que Evo prejudicou o Brasil? Prejudicou a Petrobras, isso sim. E a Petrobras há muito deixou de ser do povo brasileiro. Não é mais estatal, é de capital misto. Tem investidores, um dos quais é o Estado. É uma empresa que pode até orgulhar o brasileiro, mas não vem agradando aos bolivianos.

A Petrobras age na Bolívia como qualquer outra empresa capitalista. A não ser pelo fato de ter realizado investimentos de risco no país, ela gera divisas para o Brasil às custas da exploração maximizada de recursos naturais alheios. Traz dinheiro pra cá, não pra lá. Por mais que se diga o contrário, beneficia a nós, não a eles.

Lula tem agora que escolher um caminho. Se for coerente, acatará a soberania boliviana e sentará para negociar com Evo uma nova porcentagem para a divisão dos lucros. Afinal, o boliviano fez o que Lula prometeu fazer, mas não conseguiu: mudar o país.

Já a mídia, só lhe resta atacar. É o que, com pequenas exceções, ela vem fazendo. E vai continuar assim. Afinal, os grandes jornais e emissoras de tevê têm ojeriza à soberania popular. Não querem de jeito nenhum que o povo seja dono de suas riquezas. Afinal, foram a favor da privatização da Vale do Rio Doce e da venda de grande parte da própria Petrobras. Se entregaram as riquezas do país aos estrangeiros, claro que vão querer espoliar o que é dos outros.

É o jogo do capitalismo global: ele me explora, eu exploro você, você explora aquele outro. Pobre de quem não tem quem explorar, caso da Bolívia, pobre dos pobres, que no dia 1º de maio resolveu tomar uma decisão contra essa palhaçada a que chamamos neoliberalismo. [r]

colaborou. renato brandão

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mas pode isso?

por hugo fanton, em frankfurt

Outro dia, uma professora perguntou-me sobre a vida no interior do Brasil. Após minutos de conversa, entrei no tema da concentração fundiária. Ao dizer que algumas poucas pessoas dispõem de áreas enormes no campo e mesmo assim não produzem, fui questionado:

– Mas pode isso?

Poucas vezes na vida fiquei tão embaraçado com uma pergunta tão simples. Com meu alemão ainda meio capenga, procurei as melhores palavras para esclarecer. E não fui feliz.

Citei impunidade, o valor imobiliário dado à terra, questões históricas e tradicionais, dentre outras explicações, e mesmo assim a alemã não entendia o fato. Falei novamente, como uma criança, já meio sem convicção, perguntando-me se dizia bobagens:

– Existem pessoas com uma fazenda bem grande, mas que não plantam. Por isso tem um grupo que quer a divisão dessas terras, já que muitos não têm o que comer nem onde trabalhar.

– Mas pode isso? – novamente a pergunta.

A vergonha foi grande. Outros alunos presentes na sala olhavam-me esperando a resposta. Não sabia direito o que falar. Todo o sentimento nacionalista que nos toma ao sair do Brasil transformou-se num forte e triste peso. Pela primeira vez na vida, tive uma realidade tão dura jogada na minha cara.

Foi notório que a professora não entendia um fato desse acontecer sem que houvesse forte mobilização social. Mobilização social não apenas de um grupo, mas de toda a nação que, pasma e inconformada, não aceitaria o fato. Afinal, "isso" não pode. Mas no Brasil pode...

Na cabeça dela, essa realidade não seria aceita pelas pessoas. Para a alemã, fosse assim, já teria ouvido falar de algo como que uma revolução social no Brasil.

Não consegui mais prestar atenção na aula.

“Mas pode isso?”

A frase martelava na minha cabeça. Era tão simples, tão lógico e tão triste. Dei-me conta de como aceitamos injustiças e vivemos nossa vida sem dar atenção aos absurdos que nos rondam.

Sempre defendi a reforma agrária, distribuição de renda, universalização de uma educação de qualidade e tantos outros temas necessários para acabar com a enorme desigualdade social brasileira.

Contudo, pela primeira vez na minha vida, percebi de fato o quão injusta e absurda é a realidade do país. Uma realidade, sempre presente em minha mente, foi como que exposta em sua vertente mais dura e chocante. A simplicidade da pergunta desnudou uma nação cega, que não é capaz nem mesmo de responder:

“Mas pode isso?”
[r]

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3.5.06

 

primeiro de maio: alemanha

por hugo fanton, em frankfurt

A tradicional passeata de Frankfurt em comemoração ao dia do trabalho contou com a presença de sindicatos das mais variadas áreas. Juntos, protestavam por melhores salários.


O grande tema da agitada manha em Frankfurt foi a exigência do estabelecimento de um salário mínimo - inexistente na Alemanha - de 8 euros a hora. A Campanha é encabeçada pelo partido Die Linke (A esquerda).

A grande maioria dos presentes eram imigrantes, com destaque aos turcos. Os estrangeiros são os mais afetados pelo desemprego e subemprego.

Manisfestantes dirigem-se ao centro da cidade. Imagem clássica de Che Guevara é a mais constante nas camisetas e bandeiras.

Em palco montado em frente à prefeitura, líderes sindicais e partidários discursam pedindo pelo salário mínimo de 8 euros/hora, convivência pacífica entre as diferentes etnias e melhores condições detrabalho, dentre outras reivindicações.

No detalhe, cartaz colocado em cima dopalco lembrando o tema da Copa do Mundo. Manifestantes pediram jogo limpo no mercado de trabalho. [r]

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2.5.06

 

das boas intenções: caridade,
piedade e convivência

por daniela alarcon

As três musas do pensamento politicamente correto. Caridade diz ao pé do ouvido, voz maternal: doe ao próximo o que não te serve mais. Piedade estreita os olhos e sussurra: apieda-te de teu irmão em dificuldade; vista teu olhar mais condoído ao passar pelos desvalidos, e provarás que é sensível a sua dor. Não desvia, diz a outra, Convivência: aja com naturalidade. Alguns leram e decoraram a cartilha; os ensinamentos foram morar em outros que nem sabiam os ter assimilado. A obra maior das três musas é a imobilidade: cumprem-se suas pequenas ordens, enquanto a grande ordem das coisas segue inalterada. Em São Paulo, naqueles três dias de abril, Piedade, Caridade e Convivência escolheram três endereços.

Rua Cardeal Arcoverde, sexta-feira, 8:30 da manhã, ônibus que não passa.
Sono quando chega o homem de boné. Eu o vejo com a visão periférica, tanto que mal o noto. Quando viro o rosto, a ação já transcorre há algum tempo. Mas acho que não foi exatamente por causa do movimento que virei, as roupas sendo arremessadas uma a uma no chão. Foi mais quando vi que todos do ponto olhavam na mesma direção, aquele ar entre o constrangimento e o não-é-comigo. Só que dessa vez, havia também represália nesses olhos dirigidos ao homem, quer dizer, aos homens. São dois. O segundo em tudo difere do primeiro (olhos sem brilho, sobrancelhas meio arqueadas e voz moderada, nem sombra da exuberância raivosa de atirar o par de tênis rasgados longe). Recolhe as peças que tornam a voar e voar, e assim sucessivamente. Escandalizados, os silenciosos olham. “Mas você precisa disso, homem; a gente tem que ser humilde e aceitar; a mulher queria te ajudar. Pára com isso”, o segundo tenta apaziguar o primeiro. “Ajudar? Ajudar? E eu lá quero esse tênis velho e essas calças imundas? Isso que ela me deu não devia dar pra ninguém. Eu não preciso desse lixo”. E ele ainda blasfema, pensam os olhos do ponto de ônibus. Até que um diz pro segundo, que deixe o outro, mal-agradecido que era, que leve as roupas para ele. “Vou levar, vou levar, sim senhor”, ele movimenta a cabeça de pronto, obedecendo a ordem. Os dois vão embora, o primeiro, secundado pelo segundo, este um cabide das sujidades do que o primeiro dispensou. Os olhares que presenciaram a infâmia (hoje o dia começou cedo!) rapidamente se dispersam conforme passam os ônibus. (Eu queria ter um espelho e me certificar que meus olhos não eram doentes como aqueles).

(A partir daqui a autora autoriza-se a se referir a si própria em terceira pessoa para se sentir menos ridícula.)

Rua Maria Paula, sábado, cerca de 16 horas, atrasados.
Sentado no canto da calçada. Marrom no rosto, roupa, cabelo e mãos. Cabe aqui lugar para beleza? Mal espera que passem, fustiga ligeiro: “Tá olhando o quê? Quando olham pra mim, se for homem, já pergunto logo se é viado ou se é polícia; e se é mulher, então, é puta”. São dois que caminham, é apenas ela quem olha. (Ela olha, mas sabe exatamente por quê?) Ele aprendeu a não olhar; anos saltando do ônibus no Terminal dom Pedro pra andar até o trabalho, viadutos e avenidas, homens marrons em profusão. Eles soltam as mãos. Há claridade no céu, estão quase chegando, eles haviam acordado ser felizes hoje. Estão bem. Mas as mãos meio zonzas se procuram de novo; os dois evitam se olhar.

Avenida Henrique Schaumman, domingo, uma da tarde sonolenta, ressaca de vinho.
O homem está nu, na avenida. Quer dizer, não completamente nu: a camisa persiste, a calça é que já vai pelos joelhos. Por enquanto ele é uma pequena figura. A rua está toda meio deserta hoje. Mais uns passos, de figura que era, ele se converte em um ser com feições; mais passos, ele cheira; mais passos, ele pode esticar a mão e quase tocá-los. Decisão rápida: estreitar-se entre a árvore e o homem? (Havia a opção de atravessar a rua e desatravessar depois. Já discutida, quando os dois o avistaram, e vetada. Uma pessoa como nós, o que é que há? Fariam mal a ele se desviassem como se desvia de um bicho, seja por medo ou nojo ou o quê). O amigo está inquieto. Ora, querido, deixe disso. Cruzam. Estão fazendo bem, mais um dois três passos. Passou. Quer dizer, quase: o homem lamenta, a tempo (e volume) de ser ouvido. “Mas ninguém dá sossego, não é possível nem cagar em paz”. [r]

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quem faz a história?

por leonardo garzaro



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